30 maio 2011

O Carácter Destrutivo

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Poderia acontecer que alguém, olhando a sua vida em retrospectiva, chegasse à conclusão de que quase todos os vínculos mais profundos que nela lhe aconteceram partiram de pessoas cujo carácter destrutivo era unanimemente reconhecido. Um dia, talvez por acaso, faria esta constatação, e quanto mais violento  fosse o choque sofrido, tanto maior a possibilidade de ele chegar a descrever esse carácter destrutivo.

O carácter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma actividade: esvaziar. A sua necessidade de ar puro e espaço livre é maior do que qualquer ódio.
O carácter destrutivo é jovem e alegre: destruir rejuvenesce, porque remove vestígios da nossa própria idade; e alegra, porque toda a remoção significa para aquele que destrói um redução total, e mesmo uma radiciação da sua própria situação. Somos levados ainda mais a uma tal imagem apolínea do destruidor se nos dermos conta de como o mundo se simplifica enormemente se for posta à prova a sua vocação para a destruição. É este o grande laço que envolve em consonância tudo o que existe. É um ponto de vista que proporciona ao carácter destrutivo um espectáculo da mais profunda harmonia.
O carácter destrutivo está sempre disposto a trabalhar. É a natureza que lhe prescreve o ritmo, pelo menos indirectamente, pois tem de se antecipar a ela. De outro modo, será ela própria a levar a cabo a destruição.
O carácter destrutivo não tem ideais. Tem poucas necessidades, e muito menos a de saber o que ocupará o lugar da coisa destruída. Primeiro, pelo menos por alguns instantes, o espaço vazio, o lugar onde a coisa esteve, onde a vítima viveu. Haverá sempre alguém que precise dele sem o ocupar.
O carácter destrutivo faz o seu trabalho, evita apenas o trabalho criativo. Do mesmo modo que o criador busca solidão, o destruidor tem sempre de estar rodeado de gente, de testemunhas da sua eficácia.
O carácter destrutivo é um sinal. Do mesmo modo que uma referência trigonométrica está exposta ao vento por todos os lados, ele expõe-se de todos os lados ao palavreado. Não faz sentido protegê-lo disso.
O carácter destrutivo não está nada interessado em ser compreendido. Considera todos os esforços nesse sentido como superficiais. A incompreensão não o afecta. Pelo contrário, provoca-a, tal como os oráculos, essas instituições estatais destrutivas, a provocaram em tempos. O mais pequeno-burguês de todos os fenómenos, a bisbilhotice, só acontece porque as pessoas não querem ser mal entendidas. O carácter destrutivo deixa que o interpretem mal; não fomenta a bisbilhotice.
O carácter destrutivo é o inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca o seu conforto, e a sua concha é a sua quinta essência. O interior da concha  é o rasto revestido a veludo que ele deixou no mundo. O carácter destrutivo apaga até os vestígios da destruição.
O carácter destrutivo está na linha da frente de combate dos tradicionalistas. Alguns transmitem as coisas tornando-as intocáveis e conservando-as, outros transmitem as situações, tornando-as manejáveis e liquidando-as. Estes são os chamados destrutivos.
O carácter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cuja afecção fundamental é a de uma desconfiança insuperável na marcha das coisas, e a disposição para, a cada momento, tomar consciência de que as coisas podem correr mal. Por isso, o carácter destrutivo é a imagem viva da fiabilidade.
O carácter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas por isso mesmo vê caminhos por toda a parte, mesmo quando outros esbarram com muros e montanhas. Como, porém, vê por toda a parte um caminho, tem de estar sempre a remover coisas do caminho. Nem sempre com brutalidade, às vezes fá-lo com requinte. Como vê caminhos por toda a parte, está sempre na encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que o próximo trará. Converte em ruínas tudo o que existe, não pelas ruínas, mas pelo caminho que as atravessa.
O carácter destrutivo não vive o sentimento de que a vida é digna de ser vivida, mas de que o suicídio não compensa.
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Walter Benjamin
[retirado da edição de Maio da revista Punkto.]