01 maio 2007

Neste [nosso] jantar

Neste jantar, todos faíscam alegria e alegremente cospem quem são, como as palavras, uns aos outros, em mútua compreensão, em partilha perfeita.
Harmoniosamente desferem golpes certeiros, por vezes em si mesmos, infectando de puros e sinceros sentimentos as vítimas sedentas desse sangue de amor.
Neste jantar, como na mesma vida por todos vivida, não há dúvidas a temer. Todos sabem com o que podem contar, libertando cada um as suas liberdades, estas sempre em comunhão entre si, colidindo em abraços profundos e sufocantes. Barulhentos sempre, que estes sentimentos nunca tiveram fama de se sentar e comer sossegados.
Também neste jantar, as entradas são servidas – como tudo o resto – à vez. Aqui, neste jantar, ninguém é mais do que ninguém. Estabelecida esta hierarquia, não há que esperar para começar o deleitoso saborear da comida que se rasga nos dentes. Ninguém se atrasa(ria). Não por receio de bela repreensão ou espontaneidade adiada. Neste jantar, todos são felizes com as regras, pois estas foram subtil e democraticamente alcançadas num outro jantar. Como este.
Neste jantar, todos contam, satisfeitos – umas vezes consigo próprios, outras com as restantes partes de si – as suas aventuras, as suas vitórias, as suas alegrias, na azáfama mais ou menos intensa que lhes corresponde.
Não nos deixemos cair, no entanto, na brusca tentação de adivinhar por um lado um mundo perfeito – dúvidas, medos e frustrações também se sentam à mesa; neste jantar há lugar para todos, sendo estes últimos convidados tratados com uma grande dose de compreensão, de apoio, de reflexão, integração, por vezes, possam todos jantar felizes – por outro a de se estar a aproximar um final negro, uma trágica morte ou um espirro que quebre a harmonia jantante.
Não não.
Paciência.
Num outro jantar talvez, quem sabe se não igualmente animado – marquemos a data.
Como dizia, neste jantar a ementa é sempre invariavelmente boa, como o merecem e são todos estes filhos de Deus – qualquer que ele seja, o importante é que também ele se senta à mesa, multiplicando por pães e rosas a felicidade deste jantar.
Neste jantar, as manchas de vinho acobardadas na toalha – ainda e sempre imaculada – de algodão branco e rendilhados não são camufladas por um compreensivo guardanapo. Ah pois não, que aqui as coisas não funcionam assim, está bom de ver. Com muito amor, todas as nódoas são fáceis, ou não sejam – à noite – pardos os gatos, que menos chinfrin fazem os miados que as exaltações de bondade desta mesa.
Por isso os jantares como este – todos, por estas bandas – são sempre irrepetivelmente longos.
Parecem, no entanto, curtos, no seu altruísmo exacerbado e ardente.
Mas – dou-vos agora o prazer previsível da existência de um “mas”, tanto quanto possa fazê-lo, todas as histórias têm um “mas”, mesmo aquelas mais floridas e mágicas – neste jantar, um dos alegres – sinceramente alegres – viventes está um tanto insatisfeito, sentimento que desperta e aumenta ao mesmo tempo que cresce a água, ao chegar – ou ir buscar – de mais um prato; água na boca, perceba-se. Que o narrador é sempre quem mais sabe destas coisas, de tudo, enfim.
Não se sente triste, nem desapontada ou desiludida, muito menos frustrada, negada ou excluída. Como poderia, se todos se falam, se riem, organizam o caótico momento no auge da animação?
Sabe que nada disso aconteceria neste jantar.
Porque sabe este jantar verdadeiro, honesto e ensurdecedor, com tanto empenho lhe é manifestado, tanto quanto ensurdecedoras sinceridade e honestidade sempre lhe colocou, tal como todos.
Considera-se, portanto – e logicamente, dadas as circunstâncias, convenhamos que não são muitos os que desta sorte se podem gabar – feliz.
Consigo e com os outros, esta é a harmonia, cantante e contente, que se come de faca e garfo.
Reina, só para si, o silêncio.

4 comentários:

  1. Jantemos. "Hoje e sempre".

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  2. Jantaremos. [ou jantamos, my dear friend].
    obrigada pelo violeta final, se é que foi posto com o proprósito que penso.

    *

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  3. Sim, foi. Fico contente por teres reparado. :)

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  4. porra, gostei!


    não o li aqui. li o que escreveste. estive com ele na mão. dei-to na mão. mas não tive coragem de dizer qualquer palavra.
    nem agora.
    raios, gostei.
    alienação.

    ah, gostei!

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