05 setembro 2010

Da tomada de responsabilida-
de, comunicação e disparate

Nos últimos tempos (expressão que pode em alguns casos designar períodos bastante extensos e que, no entanto, no que me diz respeito se refere apenas a pouco mais do que o último ano) tenho vindo a concluir toda uma série de coisas de que nunca tinha tomado consciência; a maior parte delas é irrelevante, pelo menos neste contexto, porém algumas parecem-me merecedoras de especial destaque no meu pensamento.
São elas os conceitos banais (na verdade quero dizer banalizados) de "responsabilidade", "comunicação" e "disparate".


Lateja-me cada vez mais fundo não a irresponsabilidade (bom, essa também, mas menos, pelos motivos que pretendo apresentar) mas a total não-responsabilidade que brota de cada fenda de que me aproximo.
Se é verdade que a irresponsabilidade, diz a norma e diz bem, provoca geralmente dano de alguma espécie, é não menos verdade que cria também alguma coisa, eventualmente nova. Não necessariamente, e ainda bem, creio eu.
Enquanto atitude, no entanto, enquanto directiva geral da existência, agrada-me mais do que a não-responsabilidade, tanto quanto implique uma acção, uma tomada de posição, um risco, na pior das hipóteses; irrita-me (deus me valha!) profundamente quando acontece, mas não acredito que a irresponsabilidade seja uma postura planeada e, nessa medida, parece-me ser apenas dotado de irresponsabilidade aquele que, a dada altura e em dadas circunstâncias, pensou ser capaz de levar a cabo mais do que aquilo que podia/queria/pretendia realmente. Acto vagamente inconsciente, é certo, mas que penso ser merecedor de mais consideração do que a passividade dos que, não correndo, é verdade, o risco de serem irresponsáveis, o fazem simplesmente não assumindo qualquer tipo de responsabilidade. Se deles nada é esperado, nada, ou muito pouco, infelizmente, lhes é exigido. Dessa forma, permanecendo neutros (sem grandes altos, mas sem grandes baixos, à sombra de uma mediania estéril) tornam-se seres insignificantes (porque sem significado) com direito à abstenção que tanto lhes convém.
Um desafio: corre a porra de um risco. Assume qualquer coisa de ti.


Outra questão, que se me apresenta ainda mais grave do que a anterior, é a desistência e a recusa transversais de estabelecer comunicação com quem quer que seja.
Há uma existência sócio-cultural e histórica por trás de nós e para onde quer que olhemos que nos impede de comunicar livremente, de nos expressarmos perante os outros e perante nós mesmos. E ninguém sabe porquê. Porquê, hoje, à luz de uma sociedade pretensamente liberal e encorajadora da auto-determinação, sorrir e acenar? Porque temos de provar que do que anda nas nossas cabecinhas apenas um conteúdo muito filtrado sente a chuva cá fora. Não sabemos a quem, mas também não importa.
Quanto mais tempo corre, mais me sinto um "fervoroso adepto da comunicação": dei-lhe uma oportunidade e tenho vindo a sentir-lhe os efeitos. Os livros ditos de "auto-ajuda" (o seu estereótipo, pelo menos) talvez revelem que a chave é comunicar primeiro connosco próprios, para que possamos então comunicar com os outros; pois eu discordo profundamente dessa ideia, em qualquer forma que ela possa tomar: só desde o momento em que decidi trocar algumas breves palavras com o exterior consegui realmente começar a ouvir o que eu próprio dizia. (Se todos nos ouvíssemos um pouco mais quando falamos, evitaríamos a maior parte das asneiras que dizemos constantemente e que, por força do hábito, soam - a nós e aos outros, que assim os tomam por referência - perfeitamente normais.)
A verdade é que uma máquina-comunicante bem oleada poderia ser a solução para muitos conflitos, estivéssemos nós dispostos a assumir as nossas posições sem subterfúgios e a manifestá-las claramente, ouvindo com atenção o que obtemos como resposta. Claro que na prática, somos todos tão bons e cheios de razão que nem nos damos ao trabalho de calçar os sapatos dos outros e perceber o que lhes custa andar, mesmo quando nos são atirados à cara explicitamente.
Qual será o raio do mal em dizer-se o que se sente e o que se pensa? Quem é esse juiz supremo que vem cá abaixo dizer-me que estou errado? Quem é que define essas regras, afinal, alguém me diz?
Até lá vou tentando seguir-me a mim mesmo, mas há dias em que a maré é demasiado forte para ser desafiada. (E aí odeio-me por ir com as ondas.)


Por último, intriga-me a subvalorização do poder e importância do disparate, no sentido da existência e prática de acções que aparentemente não possuem uma razão de existir.
Essa existência é tida sempre como de alguma forma negativa e desencorajada na maioria dos contextos, como se a sua não-relação directa com o que é "lógico" a tornasse inútil, quando na verdade ela me parece de uma fertilidade sem precedentes. O desafio é aprender a canalizar essa fertilidade de forma a que possa ser utilizada como matéria-prima de qualquer empreendimento.
Eu próprio, durante grande parte do meu crescimento, não reservei lugar para essa forma de imaginação, tendo ela surgido apenas ao contactar com meios e pessoas (que aqui poderia definir positivamente como disparatadas) mais abertas a essa realidade (na qual agora me incluo).
A prática do disparate parece-me, assim, um exercício interessante e até útil, na medida em que queiramos manter a perspectiva sobre o que acontece à nossa volta sem nos deixarmos embrenhar demasiadamente no senso-comum. Sobre isso, dizia Bachelard que "em caso de necessidade, o absurdo, por si só, liberta". (Gosto muito desta frase.)
Note-se, ainda assim, que compreendo e não critico a opção pelo não-disparate (quando se trate efectivamente de uma opção). Penso que a atenção que o verdadeiro nonsense atrai é difícil de gerir e, nesse sentido, simpatizo com aqueles que preferem não ter dedos apontados a si.
Por outro lado...: que consequências concretas poderá isso ter? De facto, não sei até que ponto o olhar reprovador de pessoas que não têm comigo qualquer relação poderá ter, objectivamente, qualquer consequência. Por esse motivo, tenho vindo a aprender a não limitar a minha existência ao que é vulgarmente considerado aceitável e/ou neutro; tenho vindo mesmo, em alguns casos, a apreciar o dedo que me apontam desde que me lembro: gosto da ideia de estranheza e do abrir de horizontes que ela possibilita ("... o que admira é que haja coisa alguma que não cause estranheza." Fernando Pessoa).
No que depender de mim, senso-comum e socialmente correcto têm os dias contados.


4 comentários:

  1. Acho muito interessante que tenhas agregado estes 3 assuntos no mesmo texto. À partida, dir-se-ia que não estão directamente relacionados mas eu entendo que os queiras relacionar. Não sei bem explicar o que entendo daí mas também me parece que, tu próprio, ainda podias desenvolver essa questão da articulação (para futuro). É claro que vamos discutir sobre isso e tudo o resto :).

    No primeiro ponto, acho que estamos de acordo. O comodismo (essa tal não-responsabilidade) é frequentemente adoptada como estratégia e, certamente, merecedora da maior desconsideração. Infelizmente é o que mais há.
    A disponibilidade para assumir o risco parece-me, de facto, uma absoluta urgência, especialmente quando dê lugar a um tipo peculiar de rupturas - os 'breakthrough' dos ingleses - de onde possam sair consequências tanto negativas como positivas. As tais coisas novas de que falavas. Fragmentárias e desarticuladas a princípio, estas consequências podem ser o material para novos paradigmas. Pedro Pita Barros, Professor da U. Economia da U.N.L. defende que se atribua uma bolsa à melhor ideia fracassada de cada ano.

    No segundo ponto, também sinto que há uma grande indisponibilidade para a comunicação - i.e. para por em comum sentimentos, o que implica apropriar-se um pouco do outro e permitir que ele se aproprie também. De forma equilibrada, naturalmente, mas ainda assim, aceitando não monopolizar. Isto implica uma confiança e uma disponibilidade que são, infelizmente, raras. Confiança para depositar no outro, disponibilidade para receber do outro. Tanto uma coisa como outra parecem demasiado raras. Pode ser essa falta de disponibilidade para o risco do primeiro ponto, mas parece-me mais do que isso.
    Perfeitamente coerente com isto, o que estás a defender no antepenúltimo parágrafo é a assertividade. Está tudo na 1ª frase - "...estivéssemos nós dispostos a assumir as nossas posições sem subterfúgios e a manifestá-las claramente, ouvindo com atenção o que obtemos como resposta." - impor a nossa posição sem escutar a do outro é agressividade; submeter-se às posições alheias sem manifestar a sua é passividade; recusar ou ignorar a posição do outro, sem manifestar a sua é a atitude passiva-agressiva; manifestar a sua, escutando a do outro, conforme disseste, é a assertividade.
    (se este assunto te interessar, descobri por aí uns livros da minha mãe com isto).

    Sobre o terceiro ponto, penso que já comentei o essencial no primeiro. Ainda assim parece-me que este traz algo de novo que é: interroga(s)-te se essa prática da irresponsabilidade/disparate deve/merece/compensa ser tornada pública.
    ?
    Num primeiro plano, é útil em privado porque permite tornar a percepção mais rigorosa ao tirá-la do fastio. Em público pode ser útil por ter a eventual capacidade de suscitar idênticos questionamentos. Mas em público pode também trazer atenções que podem colocar em risco certas coisas a que nos acomodámos.
    No fim de contas, o que valorizamos mais?

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  2. Para começar, não foi, de facto, consciente o agrupamento destes temas; quando cheguei ao fim e reli, tive a surpresa de ter estado sempre de alguma forma a falar do mesmo. Foi engraçado perceber isso, embora não consiga precisar o que significa.

    Quanto às tuas questões, sim, eu interrogo-me frequentemente sobre o que devo ou não guardar só para mim. Daí aquele meu conflito entre deixar-me estar no meu canto, e agir livremente mesmo quando isso implique ter gente a olhar-me com ar eventualmente reprovador.
    Depois, não partilho da forma como pões as coisas quando falas das "coisas a que nos acomodámos". Não penso que seja uma questão de comodismo; a minha tónica está no facto de que ambas as coisas têm (ou podem ter) valor e não creio que seja necessário hierarquizar esses valores, uma vez que acredito poderem coexistir sem que daí venha qualquer tipo de incoerência. O que acho que estás a querer perguntar, é até que ponto se devem (por serem úteis, ou whatever) manifestar publicamente os ditos disparates. Seguindo a lógica de que falava, a minha resposta é: o suficiente para provocar esse questionamento de que falas - e que eu penso só poder ser positivo -, até onde isso não coloque em causa as outras coisas a que damos valor. Não defendo o disparate pelo disparate; é preciso ter em consideração a capacidade de absorção dos que nos rodeiam. Dessa forma, defendo que se disparate até onde isso seja positivo, não só para nós próprios (também não vamos ser autistas!), mas também para os outros (sobretudo quando eles tenham especial significado). Não mais do que isso.

    Respondi? :)

    (obrigado pelos comentários! não dormiste, esta noite?!)

    *

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  3. Respondeste e acho k até respondeste a uma questão que eu pensei mas não cheguei a colocar, que era: há então quase uma espécie de dever de praticar esse disparate e de o fazer, de forma equilibrada, plublicamente. i.e. o "dever" de provocar esse questionamento (?).

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  4. Não sei se é um dever... Mas sim, acho positivo provocar questionamento.

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