14 maio 2011

Da codificação das relações

- "Onde estiveste?"
"Fiquei a conversar no carro."


Na sequência do Da tomada de responsabilidade, comunicação e disparate, alguns aspectos dessa linha de pensamento ganharam, de novo, nos últimos tempos, uma dimensão nova, diferente.
Porque me parecem, agora, aqueles três pontos, tratar de uma grande questão de fundo, continuo a temática, sob um novo título.

Primeiro digo, logo à cabeça, "da codificação das relações".
De facto, tudo se parece resumir aí. Perguntava eu porque raio não se comunica. Livremente. Honestamente. Comunicar, diria eu, é uma forma bastante lógica de estabelecer uma relação, de qualquer tipo. Disse-me, e continuo a subscrever, um "fervoroso adepto da comunicação", mas ainda assim tenho tido dificuldades. Porque mesmo querendo, falar quando ninguém está a ouvir não chega a poder ser considerado comunicação.
Tenho, portanto, sofrido uns ligeiros (outros nem tanto) boicotes. Isto porque o que se diz, como o que se partilha ou pode partilhar, está sujeito a regras muito precisas, que ninguém conhece, mas que ninguém questiona.
Mesmo dando-se o caso de uma manifesta tentativa de estabelecer algo mais significante, o esforço necessário para tomar a iniciativa é já muito e quando conseguido, pode revelar-se mais frustrante do que a submissão ao silêncio ou a um discurso eminentemente pouco estimulante face ao que quer que seja. Ninguém responder porque ninguém falou aceita-se, é simplesmente a recusa, a não comunicação do costume e de que já falei; berrar a plenos pulmões e não ter do outro qualquer sinal, se não da recepção da mensagem, do reconhecimento de que algo aconteceu, é um nadinha mais aborrecido.
E quando forçado a responder a que não que não agrada, ao que não corresponde à sua - do receptor - (só à sua) ideia de "certo", entra o patamar número dois da codificação, que é a hierarquia.

Como é evidente, só se deve discordar dos hierarquicamente inferiores a nós. Quanto mais não seja porque esses, em princípio, ouvem-nos. O problema está em distinguir porque é que nos ouvem. Quem fala parte sempre e naturalmente do princípio de que se está a ser ouvido, há-de ser por estar a dizer qualquer coisa de potencialmente interessante. Por outro lado, cria-se o culto do comer e calar, da ideia de que o que há a fazer é estar sossegado, dizer sempre que sim e não levantar ondas, o que torna toda a situação de pretensa comunicação bastante dúbia para ambas as partes.
Vai daí, o discurso realmente rico nalguma espécie de conteúdo corre sempre um duplo risco: o risco de ser ignorado e o risco de ser aceite acrítica e passivamente, postura que, digo eu, nenhum discurso estimulante pretende de todo criar.
Por discurso estimulante entendo a criação de condições para que algo aconteça, mude ou se desenvolva, o favorecimento de um clima de questionamento e espírito crítico. Quando generalizado, este tipo de pensamento pode alimentar-se a si mesmo, tornando-se menos sujeito às pressões da moral, do socialmente correcto e do senso-comum, cuja intenção é intrinsecamente boa, mas não me parece chegar, não me satisfaz. Já diziam os Deolinda "mas quando me impões o meu bem e eu ainda o sinto aquém, eu começo a bater mal; o teu bem faz-me tão mal.", mas isso dava outro debate (talvez um dia).

Mesmo em casa, num tipo de relação teoricamente mais próximo, mais íntimo, a comunicação está sujeita à confiança (que não é um dado adquirido em nenhum tipo de relação) e, talvez mais ainda, à vontade de - e ao à-vontade para - confiar. E essa possibilidade está em tudo ligada às questões de que aqui se tem falado. Apela-se à verdade, mas apenas se a verdade for agradável ou se os seus eventuais conflitos forem os do costume, com os quais já sabemos lidar, discordâncias neste ou naquele tema, nada de profundo ou existencial. As questões de fundo que não se enquadram na nossa estrutura (olha Deolinda outra vez!) são lixadas. Torna-se, portanto, uma postura arriscada, essa de dizer a verdade sobre o que realmente se pensa e se sente, lá dentro, mesmo no fundinho onde mais ninguém chega. De novo, um duplo risco: primeiro a possibilidade de ser rejeitado, de as nossas convicções, mais do que não serem aceites, não serem integradas no plano conjunto que se constrói entre mim e ti e ao qual não é possível retirar informação; depois, dar ao outro esse livre-trânsito da nossa pessoa é difícil de fazer e, uma vez feito, difícil de gerir.
Ainda assim há quem tente. Há quem faça essa coisa parva de tentar ser - sempre - quem é. Mas isso, como sabemos, nem sempre é permitido. A nossa casa é tida sempre como esse local sagrado e verdadeiro onde nada nos é imposto. Especialmente se, entre nós e esse nosso espaço, não existir mais ninguém. Ao viver-se com outras pessoas, sobretudo se por estas ou outras questões de codificação das relações elas se sentirem no direito de, por um lado saber e por outro intervir em tudo, a falta de espaço pode tornar-se, a pouco e pouco, simplesmente claustrofóbica.

Esse respeito pelo espaço do outro e essa urgência de participação são, acredito, questões passíveis de ser tratadas e construídas, com alguma paciência e boa vontade, mas o início, a passagem de um momento (também relacionado com as fases da vida, com a idade e a relação entre idades) em que a necessidade de autonomia é menor para um outro, em que os vários participantes das relações se tornam, enquanto indivíduos, equivalentes, não aceitando já, só porque sim, comer a sopa toda, pode revelar-se um processo exaustivo.
É difícil aceitar que valores diferentes dos nossos estejam num mesmo plano de importância e legitimidade, e por isso a tendência, imediata e instantânea, é a de procurar impor, explícita ou sub-repticiamente, os nossos valores, ocorrendo por vezes, sem que nos apercebamos, momentos de grave desrespeito pelas ideias, convicções e sentimentos das pessoas que nos são mais próximas.
A própria existência - num plano em que hierarquicamente somos logo à partida considerados inferiores - está, então, sujeita à aprovação dos donos do tecto sob o qual nos encontramos. Esse teste constante, essa pressão de estar entre a espada - aquilo em que acreditamos - e a parede - aquilo em que nos é permitido, ali, acreditar - acaba, eu diria quase inevitavelmente, por minar todas as outras relações e possibilidades de relação. Porque a passagem de alguém exterior para esse plano que acreditamos ser mais íntimo torna-se muito difícil , sendo necessárias grandes doses de convicção e determinação, tanto da parte de quem quer receber como de quem quer ser recebido, já para não falar de uma grande, enorme capacidade de se sujeitar a discussões intermináveis, que contam sempre com os mesmos argumentos - que normalmente acabam no tradicional "enquanto eu te sustentar, vives de acordo com as minhas regras", "porque eu digo".

E é dessa constante e crescente necessidade de autonomia que surge, com a eficácia possível, o carro, esse objecto - ou melhor, esse lugar - que acredito salvar a sanidade mental de muitas vidas. Porque quando existe (e já não consigo imaginar-me sem ele!), permite muito mais do que a simples mobilidade física; torna-se num espaço privilegiado, porque nosso, só nosso. É, nos casos que tento descrever, o único local onde se pode estar realmente sozinho, ou acompanhado, sem perguntas, sem justificações, sem tentativas de encobrir o que quer que seja porque sem medo de assumir o que as coisas são. O carro, para quem tem a sorte de ter um, torna-se, então, mais casa do que a própria casa, porque mais nosso.
O que nos leva à segunda parte do título que escolhi para explorar este tema, que é uma frase que me tem acompanhado bastante e, cheira-me, vai continuar a acompanhar. Quando quero/preciso de estar com alguém (que é uma coisa diferente de fazer sala ou receber visitas), não é para casa que vou, é para o carro. E por isso tantas vezes chego à porta de casa cedo, e a casa tarde. Onde estive? Fiquei a conversar no carro.
Apercebi-me, também, e achei bastante curioso, porque nunca tinha pensado nisso, que toda esta questão é muito transversal, quando ouvi, nas conferências da Dédalo - Dis:Placed, um italiano (que, creio, era do atelier Stalker) falar, a propósito já não sei muito bem de quê, da importância que tem para os italianos o carro, no contexto da privacidade e intimidade. Eu já tinha pensado nisso para mim e para a minha realidade, mas nunca tinha pensado em generalizar, e provavelmente ele também não, mas mostrou-me a pertinência do tema dizendo "in Italy, if you want to have sex you've got to have a car!".
E foi isso que me fez querer escrever este texto.



2 comentários:

  1. Olá OGC!
    Não há nada melhor na Vida que quem use a cabeça naquilo que diferencia o ser humano do resto do reino animal: pensar!
    E usar as mais variadas formas de expressão (que pode ser comunicação) para entender.
    Por isso acho que a educação pelas Artes devia começar desde a pré-primária e estar sempre presente. Porque é a única em que, mesmo baseando o seu ensino nos aspectos técnicos é possível - porque é irrevogável, inevitável - fazer sobressair SEMPRE que o artista, o autor, teve alguma finalidade com o que fez (escreveu, pintou, desenhou, construiu, compôs) que está, mais ou menos, evidente ou escondida, ou até, porque é sempre (ou quase) possível atribuir outro(s) significado(s) à(s) sua(s) obras.
    E algumas até podem ser intemporais.

    Gostava muito de ter "pedalada" para me meter mais a fundo na vossa conversa (e aproveito para pedir desculpa pela intromissão - a começar pelo "voyerismo"), mas só te posso dizer, à boa maneira dos "velhotes" que o vosso tempo é muitíssimo melhor do que o meu. No meu tempo... também eu tive o meu primeiro lugar de afirmação no carro. Ser o único lá em casa a ter carta, a ter o poder de controlar aquela máquina, ter - finalmente!!!! - a possibilidade de ser RESPONSÁVEL por alguma coisa (que não é pequena) como a segurança, foi o MÁXIMO. Foi a primeira vez que me senti PESSOA.

    E, no meu tempo... era mais verdade o que o italiano disse, porque se era muitíssimo mais difícil poder arranjar onde ter privacidade a sós, era também muito mais difícil arranjar um que fosse de intimidade a dois.

    Mas, voltando às artes, e sobre este tema, sobretudo para poderes/poderem refletir um pouco mais sobre os conceitos que vos têm ocupado (e a sua evolução no tempo) aconselho-vos a tentar ver, seja como for as várias comédias em que entra a Mónica Vitti e/ou são realizadas pelo Mario Monicelli.
    Porque são comédias ridicularizam coisas muito sérias e permitem-nos rir, rir muito dos DISPARATES dos seres RESPOSÁVEIS que resultam das REGRAS criadas que, a serem seguidas ACRÌTICAMENTE só podem acabar na criação de seres responsáveis (=passivos, acríticos, ovelhas do rebanho, membros do "main stream" (que bonito...)
    Se quiseres tenho uma dessas comédias em casa e poderemos arranjar forma de a veres. Chama-se "A Rapariga com a Pistola" - no original "La Ragazza con Pistola".

    Em mim quase teve efeitos terapeuticos...
    Um abraço do
    Zé do Boné

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  2. Uau, Zé, obrigado pelo comentário! Intromete-te à-vontade! :)

    Gostava muito de ver essa ragazza, então. Temos de tratar disso.

    :)

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